domingo, 6 de janeiro de 2008

3 EFES

Carlos Gerbase é um dos maiores nomes do cinema gaúcho. Ponto. Isso poucos discutem. Mas sua importância está muito mais relacionada ao pioneirismo e à produtividade do que exatamente pela qualidade de seus trabalhos. Tem relevância pelos primeiros longas, lá no início dos anos 80, como INVERNO (1983) e VERDES ANOS (1984), por ter sido um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora que completou 20 anos de atividades no ano passado, e por ter realizado algumas das mais destacadas obras no Rio Grande do Sul após a retomada do cinema nacional lá pela metade dos anos 90, como TOLERÂNCIA (2000) e SAL DE PRATA (2005). Mas estes são bons filmes? Esta questão provoca dúvidas e debates. E seu novo trabalho, o independente 3 EFES, segue o mesmo caminho.

Filmado em apenas 20 dias, da forma mais rápida e barata possível (especula-se que tenha custado menos de 100 mil reais), em vídeo digital e com equipe e elenco totalmente gaúcho - muitos alunos do próprio diretor no curso de graduação em Cinema da PUC-RS - 3 EFES é para Gerbase o que HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES (2002) foi para seu colega Jorge Furtado: uma obra pequena, porém não menor, que de forma descompromissada e discreta consegue explorar melhor suas possibilidades, revelando um domínio da linguagem cinematográfica mais apurada e centrando-se no que realmente importa: no roteiro e no desempenho dos atores e técnicos.

Se TOLERÂNCIA pretendia marcar o cinema policial brasileiro, partindo da nova composição familiar moderna, SAL DE PRATA era ainda mais filosófico, tentando ousar a partir de um ponto de vista interno da sétima arte, discutindo a estrutura da imagem na ficção audiovisual, com elementos de morte e romance (para ficarmos somente entre os dois filmes anteriores do cineasta). Já 3 EFES tem como argumento uma teoria mais divertida do que pretensiosa: a de que todo ser humano é regido por três instintos básicos, palavras essas iniciadas com a letra "F": fome, foda e fasma (que, apesar de não ter no meu dicionário, teria origem no grego - ou seria latim? - e significaria "representação, vaidade, máscaras sociais que assumimos diante as mais diversas situações"). Assim, ele nos coloca diante uma moça que sozinha precisa sustentar o irmão mais novo e o pai desempregado. Cansada do trabalho, decide aceitar o convite de uma amiga para trabalhar como prostituta. Ao mesmo tempo, descobre que há um histórico familiar no assunto - sua tia, hoje casada, fazia programas quando mais nova. Esta, por sua vez, se sente atraída por um papeleiro, ao mesmo tempo em que o marido dela irá fazer uso do seu poder sexual para tentar manter o emprego.

Em resumo, o que temos é uma comédia de erros clássica, com desencontros, confusões e trapalhadas. Porém, ao lado do humor leve, há também uma certa dose de crítica social, levantando pontos de vistas pertinentes ao nosso universo contemporâneo: o que vale mais, barriga cheia ou valores éticos tradicionais? O que compõe uma verdadeira família? Até que ponto estamos dispostos a "interpretar" para atender necessidades básicas? Gerbase, por mais que tente confrontar e inovar, é, na verdade, até um pouco conservador em suas preocupações.

3 EFES chamou atenção também por ter sido lançado de forma simultânea em quatro mídias distintas: cinema (em cópias digitais), em dvd (para locação e venda), na tv (no Canal Brasil e na TVCOM-RS) e pela internet (para download no site oficial). Ou seja, só não viu quem realmente não quis. A experiência parece ter sido bem sucedida, já que só os contratos de venda para tv, dvd e internet garantiram os custos da produção, sem precisar esperar pelos resultados das bilheterias. Mesmo assim, não é um caminho definitivo a ser seguido, e que parece poder se aplicar somente a alguns casos mais específicos, como este. Não que vá gerar tendência, mas ainda assim é um exemplo a ser estudado. E se artisticamente o filme não chega a se destacar, ao menos consegue se posicionar de modo bem mais confortável dentro do currículo do seu realizador. O que, convenhamos, também não quer dizer tanta coisa assim.

3 Efes, Brasil, 2007
(nota 6)



sábado, 5 de janeiro de 2008

Ó PAÍ, Ó

Monique Gardenberg é uma diretora bastante singular dentro do cenário cinematográfico nacional. Ela começou junto com a chamada retomada, em 1995, com o internacional JENIPAPO (que trazia como protagonistas o belga Patrick Bauchau, de O QUARTO DO PÂNICO, e o canadense Henry Czerny, de MISSÃO: IMPOSSÍVEL). Após o resultado bastante irregular da estréia, se aventurou, oito ano depois, em 2003, em adaptar o badalado romance de Chico Buarque, BENJAMIM, revelando ao mundo o talento da filha do ex-casal Glória Pires e Fábio Jr., Cléo Pires. Se o primeiro filme era uma intrincada trama de suspense e intriga, o seguinte apostava mais no instinto e na sensibilidade dos personagens principais. Ninguém arriscaria dizer, então, que ela seria a pessoa certa para traçar um painel popularesco de Salvador em Ó PAÍ, Ó, versão para a tela grande da peça musical homônima levada aos palcos em 1992 pelo Bando de Teatro Olodum. Mas não é que ela dá conta do recado?

Ó PAÍ, Ó é uma gíria baiana que significa "olhe para aí, olhe!", e que é usada na conversação mais ou menos como os gaúchos empregam o "bah". Ou seja, a qualquer momento e por qualquer motivo. O filme assumidamente não tem um roteiro único e fixo, uma trama fechada. Ao invés disso, procura imaginar um cenário representativo da cultura baiana. Roque (Lázaro Ramos, muito à vontade) é um jovem trabalhador preocupado em conquistar uma nova namorada e com o desfile do bloco do Araketu durante o Carnaval. Seu Jerônimo (Stênio Garcia, com uma dentadura incompreensível, numa pequena participação) é o comerciante que quer incentivar o fluxo de turistas em sua loja de antiguidades. Boca (Wagner Moura, exagerado, fora do tom) é um pretenso playboy racista e preconceituoso. A função dele é mais representar um segmento da sociedade dedicado a explorar o lado mais fraco, sem respeito por este. Dona Joana (Luciana Souza, a melhor do elenco e grande revelação) é a beata dona do cortiço que hospeda a maior parte dos personagens, como a mãe-de-santo, o travesti, o taxista e a mulher especializada em abortos. Passa o dia rezando, mas não pensa duas vezes em cortar a água quando os inquilinos atrasam o pagamento. Sua missão é criar os dois filhos pequenos enquanto espera pela volta do marido, que há anos a abandonou. Há ainda Psilene (Dira Paes, sempre competente), que esconde o verdadeiro motivo que a fez abandonar o namorado europeu. Como se pode ver por estas rápidas definições, são todos quase estereótipos, porém apresentados dentro de um contexto definido e com funções específicas, livrando-os de uma superficialidade desajeitada e indesejada.

Montado de forma ágil e inteligente por Giba Assis Brasil (O HOMEM QUE COPIAVA) e produzido com esmero por Sara Silveira (CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS), ambos gaúchos, Ó PAÍ, Ó é um belo exemplo da produção nacional, ligado com as tendências que ilustram nossa cinematografia. É um longa alto astral, que só desvia desse caminho no final trágico e anti-climático, que, se necessário para o discurso, parece desafinar do tom empregado até aquele momento. Muito colorido, com boas seqüências musicais e envolvente. é um filme que alegra o espírito, sem deixar de provocar reflexão e análise. Monique cumpre bem a missão de fazer do seu um cinema verde-e-amarelo, conectado com o que aqui se faz e prolifera. Pode, após tanto impacto, parecer meio vazio, mas o mérito está justamente aí: unir conteúdo a algo esfuziante e belo.

Ó Paí, Ó, Brasil, 2007
(nota 8)


O MUNDO EM DUAS VOLTAS

O documentário nacional tem se revelado, nos últimos tempos, como um campo fértil para as mais diversas experimentações. Há os tratados históricos ("Cartola"), políticos ("Pro Dia Nascer Feliz"), entrevistas ("Oscar Niemeyer - A Vida é um Sopro"), esportivos ("Inacreditável - A Batalha dos Aflitos") e reveladores ("Estamira"). Faltava apenas os turísticos, de descobertas transformadoras. Isso, claro, até o lançamento de O MUNDO EM DUAS VOLTAS, o relato da aventura da Família Schürmann, que no final da década de 90 repetiu os passos do navegador português Fernão de Magalhães na primeira volta ao mundo, no início do séc. XVI.
Eles saíram do Brasil, contornaram a Patagônia, entraram Oceano Pacífico adiante, foram até a Ilha da Páscoa, costearam várias ilhas da Oceania, passaram pela África, subiram até Portugal e Espanha, para somente aí, quase três anos depois, retornarem à nação verde-e-amarela. Uma travessia bastante singular, que trouxe consigo diversas revelações e novidades.

A realização de O MUNDO EM DUAS VOLTAS tomou um período de 10 anos, entre concepção da idéia, execução do percurso e pós-produção. Durante a viagem o veleiro Aysso percorreu mais de 30 países, quatro continentes e três oceanos. Foram cerca de 60 mil quilômetros em 891 dias de viagem. E quem coordenou as filmagens foi um dos filhos do casal Schürmann, David. Ele, que já havia vivido no mar dos 10 aos 15 anos ao lado dos pais Vilfredo e Heloísa, estudou cinema e televisão na Nova Zelândia e estréia como diretor neste projeto. Ele apresenta um resultado bastante positivo, principalmente visando o lado cultural e curioso, deixando o cinematográfico num segundo plano, aproximando-se mais de uma grande reportagem ou de um vídeo familiar.

O documentário pode ser acompanhado como uma história de ficção. O espectador é colocado ao lado dos navegadores na estranheza do frio do sul, deslumbra-se com as belezas naturais do oriente e encanta-se com cada nova descoberta, assim como se espanta com os costumes exóticos e com os perigos enfrentados. Desse modo, o filme basta-se satisfatoriamente. Enquanto cinema, por outro lado, não apresenta nada de novo ou extraordinário. Como disse o próprio produtor Fabiano Gullane, durante o lançamento do filme em Porto Alegre, "este longa foi feito para o público, e não para a crítica".

Sendo assim, espera-se que aquele que se aventurar pelos mares de O MUNDO EM DUAS VOLTAS fique tão envolvido pelo que vai sendo vislumbrando nesta fantástica jornada quanto a própria Família Schürmann. Narrado na primeira pessoa pelos próprios protagonistas, o filme ganha com o paralelo traçado à viagem de Magalhães, através das belas ilustrações de Laurent Cardon e pelo competente, principalmente por ser bastante simples e direto, roteiro de Luis Bolognesi (BICHO DE SETE CABEÇAS). Sem muitos rodeios, nós próprios somos levados nesta aventura. O que se faz aqui é, sim, uma volta ao mundo cultural, turística, histórica e reveladora. Não é muito cinema, mas quem foi que disse que isso chega a ser um pecado?

O Mundo em Duas Voltas, Brasil, 2007
(nota 7,5)


OSCAR NIEMEYER - A VIDA É UM SOPRO

"É possível contar a história de um povo através da sua arquitetura?" Com essa premissa bastante ambiciosa começa o material de divulgação do filme A VIDA É UM SOPRO, trabalho de estréia na direção do gaúcho Fabiano Maciel, há anos radicado no centro do país. E tendo essa intenção em mente, o realizador não poderia ter sido mais feliz na escolha do personagem enfocado: Oscar Niemeyer, um dos maiores arquitetos da História e um dos grandes gênios já nascidos no Brasil, reconhecido internacionalmente pela contribuição que sua obra gerou à arte e ao desenvolvimento arquitetônico mundial.

O melhor, como não poderia ser diferente, foi a sábia decisão de Maciel em deixar o próprio Niemeyer como protagonista. Ou seja, apesar de um belo trabalho de pesquisa, o longa não se apóia em imagens antigas, depoimentos de outros e descobertas garimpadas a muito custo. Esse tipo de material e recurso até existe, mas está presente apenas como ilustração, e não como alicerce. Quem oferece esta base é, claro, Niemeyer, que está vivo e bastante lúcido aos 99 anos de idade (ele completa um século de vida no dia 15 de dezembro de 2007). O diretor afirma ter feito várias entrevistas, durante alguns encontros em pouco menos de uma semana, com um total de aproximadamente 400 perguntas. Niemeyer respondeu apenas as que lhe interessava. E, com estas respostas, estava recolhida a matéria-prima para um dos mais interessantes e curiosos documentários nacionais recentes.

Nestes 99 anos, Niemeyer calcula ter feito algo em torno de 1000 projetos, sendo que 600 destes chegaram a ser executados. Todos os mais importantes, que fizeram do seu nome referência mundial, estão presentes: Pampulha, em Minas Gerais, Brasília, a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, a sede do Partido Comunista, em Paris, a Universidade de Argel, na Argélia, o Museu de Arte Moderna de Niterói, no Rio de Janeiro. Ainda assim, poucos exemplos de uma carreira que quebrou barreiras e gerou novos conceitos, dentro e fora do seu campo de atuação. O espectador interessado neste ponto de vista sairá mais do que satisfeito, pois o filme oferece um amplo painel de quem foi e o que representou o arquiteto. Mas o discurso empregado não se contenta só com isso; há mais, muito mais. E assim temos a chance de nos depararmos com um Niemeyer falível, crítico, por vezes desiludido, desbocado, audacioso, consciente de sua importância e dos feitos que protagonizou.

A VIDA É UM SOPRO é uma aula de história, de cultura, de sociedade e desenvolvimento, mas, acima de tudo, de vida. E além do clichê mais comum do gênero. Não porque iremos nos inspirar nos caminhos percorridos pelo mestre retratado. Afinal, alguém como ele não nasce todos os dias. Mas, sim, por nos mostrar que mesmo os mais sábios são passiveis de erros e de pequenas falhas, como desprezo e orgulho. E, tornando-o humano, Fabiano Maciel conseguiu fazer do Oscar Niemeyer que escolheu ainda mais universal. Uma decisão no mínimo inteligente. E, quem ganha, além dos realizadores e do público, é o filme em si, que adquire uma dimensão ainda mais imprescindível.

Oscar Niemeyer - A Vida é um Sopro, Brasil, 2007
(nota 8)


CÃO SEM DONO

O Daniel Galera foi meu colega de faculdade. Ele sempre foi um cara mais na dele, quieto, porém muito simpático e de amigos fiéis. Mas a característica mais marcante dele estava no olhar: algo que revelava uma insatisfação com as opções mais óbvias do mercado de trabalho e uma necessidade de trilhar outros caminhos, explorar possibilidades além daquelas que estavam sendo apresentadas. Criativo e inteligente, usou um dom natural - a habilidade em escrever - para se firmar como um nome forte na literatura nacional atual. E depois de um volume de contos ("Dentes Guardados", Ed. Livros do Mal), partiu para a narrativa longa com o elogiado "Até o Dia em que o Cão Morreu" (que está sendo relançado agora pela Cia. das Letras). CÃO SEM DONO, que está chegando aos cinemas, é a versão cinematográfica, assim como o personagem principal seria uma possibilidade do próprio Galera. Não tive oportunidade de ler o livro ainda. Mas o filme já assisti. E afirmo: é bom. Aliás, muito bom.

Ciro (Júlio Andrade, de O HOMEM QUE COPIAVA, totalmente entregue ao personagem, numa atuação minimalista e intensa) é um jovem recém formado em letras que ganha a vida como tradutor de russo enquanto não decide o que realmente quer fazer. O longa começa no dia seguinte a uma balada, com ele na cama com Marcela (a estreante Tainá Müller, namorada do Galera e muito convincente em suas angústias e dilemas), uma garota que conheceu provavelmente naquela mesma noite. Ele está perdido, ela quer ser famosa. Ele não vê porque sair da cama, ela quer viajar e conhecer o mundo. Estranhos um ao outro, aos poucos vão se conhecendo, se entregando, se revelando. E o distanciamento afetivo diminui progressivamente, até o momento em que fica em sintonia com o físico. Mas a paixão que surge não será convencional - afinal, o mundo não é fácil. E a questão é: conseguirão eles encontrarem a si próprios para, quem sabe juntos, construírem uma história única?

Como testemunha ocular desta relação está o cachorro Churras. Vira-lara, um dia resolveu seguir o rapaz até o apartamento em que este vivia e por ali ficou, sem pedir nem exigir nada em troca. Apenas um pouco de atenção e alimento. Questionado sobre o suposto "comportamento" que o dono de um animal de estimação deve seguir, Ciro afirma sem hesitar: "não sou 'dono' dele. sou amigo!" Nesta sentença está a chave da trama: ninguém é de
alguém, ninguém pertence a um outro. Somos sozinhos, e podemos - ou não - estar acompanhados. Mas assim como ali está, a companhia pode se ir num estalar de dedos. Cabe ao destino, e, acima de tudo, ao desejo dos envolvidos, fazer de dois um par.

Beto Brant chega com CÃO SEM DONO ao seu quinto filme, após os comentados OS MATADORES (1997), AÇÃO ENTRE AMIGOS (1998), O INVASOR (2002) e CRIME DELICADO (2005). Este, porém, é o primeiro em que divide os créditos de diretor com seu parceiro Renato Ciasca. Os dois foram colegas no curso superior de cinema, e trabalharam juntos pela primeira vez no curta AURORA (1987), premiado nos festivais de Brasília e Gramado. Apesar de sempre terem colaborado um com o outro, só agora Ciasca assume essa posição. E o resultado é um longa menos pretensioso estilisticamente, mas com grande impacto emocional. A insatisfação do protagonista se reflete na tela, porém sem entediar o espectador, que acompanha a evolucão dos acontecimentos não distanciado, mas envolvido nos pequenos dramas destes cotidianos, tão simples e universais quanto os que nós mesmos enfrentamos seguidamente.

Grande vencedor do último Cine PE - Festival do Audiovisual, em Pernambuco, CÃO SEM DONO levou os calungas de Melhor Filme segundo o júri oficial e de acordo com a crítica, além do de Melhor Atriz, para Müller. Não sei se foi um resultado justo - não assisti todos os demais concorrentes - mas não há quem possa afirmar que não seja merecido.

Co-produzido entre São Paulo e Rio Grande do Sul, filmado inteiramente em Porto Alegre com equipe e elenco gaúcho, é um bom exemplo do quão positiva pode ser a parceria entre pólos criativos aparentemente distantes, mas poucas vezes antes tão próximos cinematograficamente falando. Com diálogos geniais - talvez a maior das qualidades do filme - e atuações muitos convincentes, seja pela verossimilhança das situações ou pela naturalidade dos personagens, CÃO SEM DONO não quer mudar o mundo nem transmitir uma grande mensagem: apenas mostra uma verdade constante e presente, sem panfletagem ou didatismo. Algo tão simples, mas que faz um mundo de diferença.

Cão Sem Dono, Brasil, 2007
(nota 8)



HÉRCULES 56

Silvio Da-Rin é um profissional bastante reconhecido no meio cinematográfico nacional. Apesar de ter dirigido o documentário em média-metragem A IGREJA DA LIBERTAÇÃO, sobre o trabalho do Frei Leonardo Boff, em 1985, é muito mais conhecido pelo trabalho que desenvolve no departamento de som, tendo aparecido nos créditos de importantes produções, como MAUÁ - O IMPERADOR E O REI (1999), AMORES POSSÍVEIS (2001), SEPARAÇÕES (2002) e QUASE DOIS IRMÃOS (2004), entre tantos outros. Estava, portanto, mais do que na hora de colocar, novamente, o seu próprio ponto de vista em uma narrativa. Por isso, foi com entusiasmo que os cinéfilos brasileiros receberam a estréia de Da-Rin em longas com HÉRCULES 56, que também segue a veia documental explorada anteriormente em suas manifestações mais autorais.
O episódio aqui enfocado não é estranho àqueles acostumados a apreciar o cinema feito no Brasil. Quem lembra de O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (1997) deve estar familiarizado com a história do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, no Rio de Janeiro, em 1969, por um grupo de manifestantes contrários à ditadura militar. HÉRCULES 56 é a versão em documentário deste mesmo episódio. Sem suspense ou fantasias históricas, temos de um lado os organizadores deste ato de terrorismo e manifestação social e, do outro, os diretamente beneficiados pela ação. Ou seja: os ex-presos políticos que foram soltos em troca da libertação do embaixador. E entre estes dois momentos isolados, uma impressionante pesquisa de imagens e arquivos da época.
Da-Rin constrói seu filme de um modo absurdamente simples: reuniu numa mesma mesa todos os sequestradores e os colocou a discutir o assunto. Sem interferências, deixaram o verbo correr e assim revelam fatos surpreendentes, assim como curiosidades ou pequenos detalhes que até tornam pitoresco um fato de dimensão muito mais séria do que a tranquilidade dos envolvidos poderia sugerir. Esta é a metade mais forte, digamos assim. Da outra destaca-se o árduo trabalho de campo executado em busca dos sobreviventes e na reconstituição dos passos destes após terem sido postos em liberdade: embarcaram no avião da Força Aérea Brasileira Hércules 56 e foram extraditados para o México. Dali, seguiram caminhos diferentes, entre os que permaneceram na militância e os que seguiram trilhas mais pessoais. Aqui o foco fica um pouco distorcido, mais preocupado com a veracidade dos fatos do que com a reflexão que poderiam oferecer.
HÉRCULES 56 é uma obra de grande importância no cenário cultural e político nacional. Com depoimentos de Franklin Martins, Flávio Tavares, Vladimir Palmeira e até do ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, traça um painel bastante completo de uma jogada relativamente inocente, mas que obteve proporções muito maiores à medida em que se desenvolvia, adquirindo um relevância até hoje marcante. A se lamentar apenas a falta de uma maior profundidade teórica nos discursos. Nada, no entanto, que vá afugentar o espectador verdadeiramente interessado. Tanto que o filme foi premiado pelo júri popular no Festival de Cinema de Campo Grande e, notoriamente, foi escolhido para ser exibido, fora de competição e sob fortes aplausos, no encerramento do último Festival de Brasília.

Hércules 56, Brasil, 2006
(nota 7)


BATISMO DE SANGUE

Filmes que abordam grandes tragédias sociais sempre são bem vindos. Só pela coragem, já partem com alguns créditos no bolso. Porém, justamente por tratarem de temas bastante conhecidos, precisam ter cuidado e originalidade na abordagem, para não parecerem explorativos e/ou repetitivos. BATISMO DE SANGUE, de Helvécio Ratton, escorrega nestes dois quesitos. Mas veja bem: "escorrega", ou seja, passa desajeitadamente por estes limites. Em alguns momentos se sai muito bem. Em outros, deixa muito a desejar.
O filme se passa em São Paulo, fim dos anos 60, quando a repressão militar da ditadura estava cada vez mais forte. Ao invés do agito estudantil (1972), de movimentos organizados (O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?) ou de reflexos no mundo civil (ZUZU ANGEL), a parcela da sociedade aqui afetada é um convento de frades dominicanos, que caminhava para se tornar uma trincheira de resistência aos atos do governo. Movidos por ideais cristãos, alguns frades decidem apoiar o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos Maringhella. Ao chamar a atenção da polícia, começam a ser vigiados e, conseqüentemente, em seguida são presos. É quando sofrem as mais terríveis torturas, gerando destinos bastante diferentes para cada um dos envolvidos.
Apesar de ser baseado num livro autobiográfico do Frei Betto, não é ele o protagonista de BATISMO DE SANGUE. Tendo como intérprete um dedicado Daniel de Oliveira (CAZUZA - O TEMPO NÃO PÁRA), Betto aqui é quase um espectador, apesar de suas andanças serem também relevantes (como o tempo que passou refugiado no interior do Rio Grande do Sul). No centro da ação, entretanto, está o Frei Tito (Caio Blat, presente também no recente O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS, que abordava o mesmo período histórico, numa interpretação visceral). Ele é o que mais sofre nas mãos dos militares, é o que mais se empenhou para tentar fazer diferença numa época tão complicada para a sociedade brasileira. Foi igualmente o que mais saiu abalado após sua libertação. Exilado na França, acabou se suicidando em 1974.
Premiado no último Festival de Brasília com os candangos de Melhor Direção e Melhor Fotografia, para Lauro Escorel (BYE BYE BRASIL, CORAÇÃO ILUMINADO, VINÍCIUS), BATISMO DE SANGUE é o resultados de dois pesos, duas medidas. Se por um lado o discurso é contundente, com interpretações acima da média (Cássio Gabus Mendes, como um dos torturadores, está impressionante, bem distante do tom cômico por ele empregado em sucessos de público como CAIXA DOIS e TRAIR E COÇAR É SÓ COMEÇAR), por outro o roteiro força muito na intenção de chocar, assumindo um tom panfletário em momentos que o melhor seria ser sutil e contundente com pouco esforço. A mão pesada de Ratton (UMA ONDA NO AR, AMOR & CIA.) também não ajuda muito. A impressão que passa é que o público enfocado é o internacional, ou pior, aquele espectador completamente ignorante do que está se tratando, como se fosse necessário explorar cada imagem violenta, cada gesto revoltante, cada frase de efeito. E, ao invés do menos significar mais, temos o oposto: um grande filme que se perde em exageros e descuidos. Infelizmente.

Batismo de Sangue, Brasil, 2006
(nota 6)




BAIXIO DAS BESTAS

O segundo longa-metragem do diretor pernambucano Cláudio Assis exponencia tantos os méritos quanto os defeitos do filme anterior, AMARELO MANGA (2002). Se em sua primeira experiência cinematográfica de desenvolvimento mais elaborado ele conseguiu um resultado muito equilibrado, sem deixar de ser contundente e provocativo, em BAIXIO DAS BESTAS parece ter cedido a um instinto mais inquisidor, revelador e inquieto, deixando a forma do discurso num segundo plano. O que parece verdadeiramente importar são as imagens fortes e as reações provocadas nos espectadores. "Estou aqui para incomodar", afirmou Assis quando lhe perguntei a respeito do que esperava conseguir com este novo trabalho. "Quero que o filme faça as pessoas se mexerem, e que ele fique nas memórias delas. Talvez não mude o modo delas agirem, mas que vai provocar uma reflexão, ah isso vai", completou.
Quando BAIXIO DAS BESTAS foi anunciado como o Melhor Filme do 39º Festival de Cinema de Brasília, no final de 2006, metade da platéia recebeu a notícia com fortes palmas - enquanto os demais também reagiram, registrando uma contrariedade sob enfáticas vaias. Cláudio Assis perdeu o Candango para Helvécio Ratton e seu BATISMO DE SANGUE, mas BAIXIO levou ainda outros5 prêmios: Atriz (Mariah Teixeira), Ator Coadjuvante (Irandhir Santos), Atriz Coadjuvante (Dira Paes), Trilha Sonora e Prêmio da Crítica. Um resultado bastante significativo, que no mínimo indica que, se o filme tem provocado reações diversas no público, junto à crítica especializada - e ao júri oficial do festival - o efeito foi bem intenso. E bastante positivo.
Mas, acima de tudo, esta não é uma obra que busca unanimidade. Afinal de contas, as temáticas abordadas no enredo são, no mínimo, propensas às mais diversas polêmicas. E o modo como são tratadas na tela não facilitam nenhuma possível controvérsia. A trama se divide em várias histórias, compondo um cruel painel da vida no agreste, tendo como foco os que vivem da prostituição - as meninas e seus agenciadores - e os mais assíduos clientes destes, principalmente aqueles chamados de "agroboys", filhinhos de papai endinheirados que estudam nas capitais e que, quando em folga, voltam para as fazendas para barbarizar, sem respeito nem atenção, a comunidade pobre que subsiste ao redor.
Caio Blat, que anda numa fase voltada ao cinema, com este e os ainda inéditos por aqui PROIBIDO PROIBIR e o já citado BATISMO DE SANGUE, é um dos protagonistas, um rapaz irresponsável que pouca atenção dá aos estudos e que só quer saber de torrar a grana dos pais em festas e emoções baratas. Ele acaba se apaixonando por uma garota, quase uma menina, que é prostituída pelo avô, que a cria. E por mais fortes que sejam os sentimentos que ele começa a nutrir por ela, a relação de poder que existe entre os dois falará mais alto. No puteiro do local trabalham mulheres mais descoladas, interpretadas por atrizes como as sempre ótimas Dira Paes e Marcélia Cartaxo (MADAME SATÃ), além de Hermila Guedes, revelada em O CÉU DE SUELY. Um dos líderes dos arruaceiros é Matheus Nachtergaele, que compõe um personagem visceral e inconsequente de assustadora perfeição.
Se o elenco nos apresenta atuações inquestionáveis, está na forma como o diretor conduz sua história que cria as maiores divergências em relação ao filme. Com cenas de gratuita violência e sexualmente explorativas, ele se distancia do objetivo inicial - refletir e questionar - para causar, acima de tudo, repulsa e desprezo. Só que este deveria ser dirigido às ações mostradas, e não ao produto artístico em si. Desse modo, BAIXIO DAS BESTAS permanece longe da audiência, não cumprindo sua função primordial: denunciar e contribuir com uma análise séria e precisa sobre um problema tão freqüente a uma parcela cada vez mais expressiva da nossa sociedade. Claro que um filme não deve ser um tratado social, mas quando ele próprio assume este posicionamento, ao menos que desempenhe corretamente este papel.

Baixio das Bestas, Brasil, 2006
(nota 6,5



OS 12 TRABALHOS

Conheci Ricardo Elias durante o Festival de Cinema de Gramado de 2003. Eu estava trabalhando na cobertura do evento, e Elias participava com o primeiro filme dele, DE PASSAGEM. Era o típico concorrente azarão, que ninguém conhecia nem tinha ouvido falar. Uma história simples - dois amigos atravessando a cidade de São Paulo durante um dia, numa espécie de road movie urbano - e com atores praticamente desconhecidos. Pois de "mais um" ele virou "O" vencedor, levando 5 kikitos: Melhor Filme, Diretor, Ator Coadjuvante (Fábio Nepô), Roteiro e Prêmio da Crítica. Consagração total. Por isso a expectativa ter sido tão grande em relação ao trabalho seguinte dele. E, felizmente, posso afirmar: OS 12 TRABALHOS é superior à DE PASSAGEM!
O cineasta mais uma vez foca seu olhar num grande centro urbano - São Paulo, claro - e da mesma forma, prestando atenção àqueles que vivem às margens dos acontecimentos: desta vez, são os motoboys. Parcela da classe trabalhadora freqüentemente desprezada, seja por um preconceito arraigado - são todos malandros, bandidos ou coisa pior - mas, ao mesmo tempo, muito solicitada - como fazer negócios hoje em dia sem o auxílio desses imprescindíveis "leva-e-traz"? Tendo como base o mito grego dos 12 trabalhos de Hércules, o filme tem como protagonista Herácles (o novato Sidney Santiago, premiado no Festival do Rio 2006 e no CinePE 2007 como Melhor Ator), um jovem recém saído da FEBEM que deve provar, em um dia, ser capaz do emprego num serviço de entregas, enquanto vai se esquivando dos problemas deste cotidiano, como clientes irresponsvéis, colegas de trabalho pouco confiáveis e seus próprios anseios profissionais.
O melhor de OS 12 TRABALHOS é sua história, bastante simples e direta. Ao mesmo tempo, os personagens são reais, verossímeis, com dramas pessoais e ricos em detalhes, contribuinido para a identificação do público com os dilemas por eles enfrentados - quem nunca lutou por um novo trabalho, para ser reconhecido por seus esforços e para vencer adversidades inesperadas com criatividade e um pouco de sorte? Ricardo Elias conduz sua história sem se intrometer no caminho, de forma discreta e sábia. Ele abre espaço, e o enredo e os atores se encarregam do resto, numa sintonia exemplar.
Com participações interessantes de Lucinha Lins, Vanessa Giácomo, Vera Mancini, Cacá Amaral e Cynthia Falabella, OS 12 TRABALHOS conta também com uma boa atuação do gaúcho Flávio Bauraqui (MADAME SATÃ), premiado como Melhor Ator Coadjuvante no último Festival de Recife, o CinePE. Este longa foi premiado também nos festivais de cinema de San Sebástian (Espanha) e de Havana (Cuba). Um competente exemplo do que se está produzindo hoje no Brasil, um filme preocupado socialmente e ainda assim interessante como entretenimento inteligente. Se continuar neste ritmo, Elias tem tudo para ser um dos nomes mais fortes dessa nova geração de cineastas nacionais que está se formando. Que venha mais, e logo!

Os 12 Trabalhos, Brasil, 2006
(nota 7,5)


SANEAMENTO BÁSICO, O FILME

Jorge Furtado é um cineasta bastante singular dentro do cenário cinematográfico brasileiro. Seus filmes conseguem combinar argumentos pertinentes, crítica social, bom humor e entretenimento, em doses bem equilibradas. SANEAMENTO BÁSICO, O FILME, seu quarto longa, repete o bom resultado. Não chega a ser tão interessante quanto O HOMEM QUE COPIAVA, seu mais bem sucedido projeto, mas ainda assim representa um grande progresso em relação ao simpático HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES ou ao curioso MEU TIO MATOU UM CARA. O importante, entretanto, é perceber que o próprio realizador se deu conta que estava começando a se repetir, e ao invés de se acomodar e seguir com o que estava dando certo, resolveu inovar e mudar as regras do próprio jogo. Desta forma, não há mais um narrador em off dividindo com o espectador os acontecimentos e um único protagonista em busca da garota amada. Só por esta inquietute, Furtado já sai ganhando!
Inspirado no arquétipo clássico da commedia dell'arte, SANEAMENTO BÁSICO, O FILME conta com oito personagens principais, todos envolvidos na construção de uma fossa pública na fictícia comunidade de Linha Cristal, no interior do Rio Grande do Sul. O problema é que cada um encara o projeto com um ponto de vista singular, buscando diferentes resultados. E nem sempre estes objetivos serão concordantes com os dos demais.
Marina (Fernanda Torres, repetindo a "Vani", de OS NORMAIS) quer a melhoria do saneamento na cidade para que o marido se cure de uma insistente micose. Joaquim (Wagner Moura, discreto) é o marido que deseja se curar e trazer sua vida sexual de volta à normalidade. Os dois vão à prefeitura solicitar dinheiro para a obra, e lá descobrem que a única verba disponível é para a realização de um vídeo de ficção, uma iniciativa do governo federal. Marcela (Janaína Kremer, do inédito AINDA ORANGOTANGOS), a funcionária, tem uma idéia: que tal usar esta grana para solucionar o problema da vila? Para isso, basta gravar uma história, com um roteiro que tenha o mínimo de sentido! O importante, segundo ela, "é não devolver o que já foi liberado!"
Silene (Camila Pitanga, ótima), irmã de Marina, topa ser a estrela do filme, e chama o namorado, Fabrício (Bruno Garcia, divertido), para emprestar sua câmera. Ele aceita participar, pois vê uma oportunidade de incrementar o turismo por ali - ele é dono do único hotel da cidade! O envolvimento de todos nas filmagens vai ficando cada vez maior e, com novas responsabilidades, decidem buscar alguém profissional! E encontram Zico (Lázaro Ramos, roubando cada cena em que aparece), um videomaker que vê nesta história sua chance de alcançar sonhos maiores. Paralelo a tudo isso estão os dois velhos, Otaviano (Paulo José, comovente), pai das meninas, e Antonio (Tonico Pereira, repetitivo), o amigo/inimigo ideal. Ambos, com suas rabugices, acabam contribuindo para o sucesso da empreitada.
Se há um defeito em SANEAMENTO BÁSICO, O FILME, é a impressão de ter sido feito um tanto às pressas. Há problemas de continuidade (na cena em que Zico e Marina conversam numa lancheria, em cada corte o pastel está num lugar diferente) e de estrutura (a longa seqüência da motocicleta parece estar descontextualizada, além de demasiadamente longa). Isso, no entanto, não chega a afetar no resultado final, que é muito positivo. Repleto de diálogos divertidíssimos, é quase impossível não se envolver com estes "inocentes" que acabam sendo levados pela atração da arte criativa. O problema imediato bate forte nos calcanhares de todos, mas como deixar de lado a imaginação e a fantasia quando esta começa a se fazer presente com uma força até então impensável?
A paixão pelo cinema, a política pública de investimentos culturais, a atenção dada pelas autoridades às necessidades básicas e urgentes e a lógica às vezes invertida estabelecida entre corpo (a higiene) e mente (a arte) são alguns dos pontos levantados com inteligência pelo realizador - Furtado é também roteirista. Com um bom desempenho do conjunto do elenco (apesar de seus altos e baixos) e uma trama enxuta, que surpreende pelo inusitado e convence pela simplicidade, é uma produção que tem tudo para conquistar um público fiel e entusiasmado. E, por que não, fazer deste um dos longas nacionais referenciais de 2007!

Saneamento Básico, o Filme, Brasil, 2007
(nota 7,5)



PRIMO BASÍLIO

É complicado saber por onde começar ao falar dos problemas de PRIMO BASÍLIO, oitavo filme dirigido por Daniel Filho e o quinto feito por ele desde a retomada de sua carreira cinematográfica, no início dos anos 2000. Depois de algumas experiências esparsas nos anos 60, 70 e 80 (até filme dos Trapalhões ele dirigiu) e muito trabalho em televisão, com a virada do século decidiu se dedicar exclusivamente à sétima arte. E desde então vem alternando sucessos de público (SE EU FOSSE VOCÊ, 2006), de crítica (A DONA DA HISTÓRIA, 2004) e até um fracasso (MUITO GELO E DOIS DEDOS D'ÁGUA, 2006). Mas, acima de tudo, eram comédias. E PRIMO BASÍLIO aposta noutro caminho, o drama, e o resultado é bastante problemático.

Poucos são os que desconhecem a trama de "O Primo Basílio". Baseado no romance do escritor português Eça de Queiroz, foi adaptado há 20 anos numa minissérie da Rede Globo, que tinha Tony Ramos, Giulia Gam, Marcos Paulo e Marília Pêra no elenco principal. Na direção, o mesmo Daniel Filho. Pois agora o que parece é que estas duas décadas fizeram mal para ele, que aparenta ter desaprendido como lidar com a dramaticidade da história. Reynaldo Gianecchini, Debora Falabella, Fábio Assunção e Glória Pires substituem os protagonistas, obviamente elas com um desempenho muito superior ao deles. Mas isso pouco importa no final das contas, já que a direção privilegia sempre o desenrolar atabalhoado do enredo, sem tempo para qualquer respiro, seja do personagem ou mesmo do ator por trás deste.

Sai a Lisboa do final do século XIX e no lugar está a São Paulo de 1958. Jorge (Gianecchini) é um engenheiro contratato para trabalhar na construção de Brasília, e por isso precisa viajar, deixando Luísa (Falabella), sua mulher, sozinha. Ela passa a receber a visita do primo Basílio (Assunção), que está de volta à cidade após uma temporada na Europa. Os dois logo se tornam amantes, o que vem a ser descoberto pela empregada Juliana (Pires). Esta, de posse de cartas reveladoras, passa a chantagear a patroa. E a relação que até então existia entre as duas se inverte, dando início ao calvário de uma e da descoberta do paraíso pela outra.

Se em A DONA DA HISTÓRIA ou em A PARTILHA (2001) Daniel Filho conseguiu conciliar um argumento de sucesso comprovado com um elenco que reunia talento e apelo popular, esta mesma fórmula revelou-se parcialmente desnecessária em SE EU FOSSE VOCÊ (que, apesar de abusar dos clichês, se tratava de um roteiro original). MUITO GELO foi um alerta, mostrando os perigos de ser tão autoral. A DONA teve 1,2 milhão de espectadores, PARTILHA mais de 2 milhões e SE EU FOSSE VOCÊ quase 3,5! MUITO GELO não chegou aos 500 mil espectadores, número que PRIMO BASÍLIO deve superar com tranquilidade. Mesmo assim não deve registrar nada muito superior. Gianecchini e Assunção são lindos, assim como Falabella, mas isso não basta, certo? Afinal, quem já não os viu seminus na telinha? E Glorinha, de quem se esperava uma grande atuação, passa o tempo todo limitada pela peruca, maquiagem pesada e figurino apertado.

Com enquadramento muito pouco criativo, edição convencional, cenário pobre e efeitos visuais constrangedores (o que são as cenas da cidade antiga?), PRIMO BASÍLIO abusa ainda do voyerismo (o sexo entre Assunção e Falabella é tão abusivo que perde o sentido inclusive dentro da proposta cinematográfica) e da falta de controle dos atores: Falabella, a melhor em cena, está sempre no limite, carecendo de uma orientação mais precisa. O que resta é uma obra sem fôlego, previsível desde a primeira cena e que tem uma conclusão absurda, inverossímil diante a nossa realidade. Um desastre anunciado, que somente se confirma com pior desdém a cada fotograma.

Primo Basílio, Brasil, 2007
(nota 3,5)

INESQUECÍVEL

Chega a ser impressionante como tanta coisa pode dar errada em INESQUECÍVEL! Isso porque estamos falando de uma trama aparentemente comum aos cinéfilos e cineastas nacionais - o triângulo amoroso, vide o clássico DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS ou o recente PRIMO BASÍLIO - e de um elenco minimamente competente, além de outros requisitos técnicos de destaque, como o roteirista e a produtora. Mas, sob o comando de Paulo Sérgio de Almeida, tudo combinado se põe diante o público como um dos maiores desastres da cinematografia brasileira recente, um produto previsível e constrangedor que afunda vergonhosamente em suas próprias ambições.

INESQUECÍVEL é dividido em três atos, cada um com aproximadamente 30 minutos de duração. O primeiro - o mais bem sucedido de todos - se passa em Buenos Aires e mostra o amor fulminante que surge entre o fotógrafo Guilherme (Caco Ciocler, perdido e sem direção) e a estilista e ex-modelo Laura (a esforçada estreante Guilhermina Guinle, incrivelmente a melhor do trio protagonista). Ela vai numa exposição dele, em seguida estão um na cama do outro e quando se percebe ela está num avião de volta para o Brasil e ele, desesperado, partindo em sua busca. Os dois voltam a se reecontrar no Rio de Janeiro, já na segunda etapa da história - quando as coincidências, e absurdos, começam a se proliferar: ela está de casamento marcado com o ator Diego (Murilo Benício, vergonhoso), que é o melhor amigo de Guilherme. Os três estão sempre juntos, e o ciúme do noivo passa a corromper as relações entre eles, até um final trágico. Mas o pior ainda está por vir, numa conclusão que pode ser, na melhor das hipóteses, classificada como risível: um dos vértices do triângulo, mesmo falecido, continua a atormentar a vida dos dois sobreviventes, levando-os praticamente à loucura.

Insano mesmo deve ser o espectador que tentar buscar alguma lógica neste embaralhado de referências ao cinema noir, ao suspense psicológico e ao romance como detonador de desgraças. Tudo é muito falso - os cenários, as atuações, os enquadramentos, os acontecimentos - e nada soa natural e convincente. Paulo Sérgio de Almeida, diretor de obras populares como SONHO DE VERÃO (1990), com as Paquitas, e POPSTAR (2000), XUXA E OS DUENDES (2001) e XUXA E OS DUENDES 2 (2002), todos estrelados pela 'rainha dos baixinhos', parece ter levado à sério demais o universo da apresentadora infantil, acreditando que tudo possa ser resolvido como num conto de fadas - ou, no caso, de terror inconsequente.

Benício, que já foi considerado um dos melhores atores nacionais de sua geração, com desempenhos elogiados em filmes como OS MATADORES (1997), AMORES POSSÍVEIS (2001) e O HOMEM DO ANO (2003), parece estar empenhado em confirmar que SEUS PROBLEMAS ACABARAM (2006), o filme que ele fez com a turma do Casseta & Planeta, talvez não seja uma exceção em sua carreira. Ele está sempre com a mesma expressão dura, fechada e quase cômica - de tão bizarra! Já o habitualmente interessante Caco Ciocler, de OLGA (2004) e QUASE DOIS IRMÃOS (2004), fica o tempo inteiro na procura por um registro, por uma orientação que nunca chega. Mas nada se compara ao roteiro estapafúrdio e esburacado de Marcos Bernstein, que nunca chega aos pés de seus trabalhos mais conhecidos: CENTRAL DO BRASIL (1998) e O OUTRO LADO DA RUA (2004). O enredo, baseado no conto "O Espectro", de Horácio Quiroga, nunca mostra a que veio e o que pretende, perdido entre dilemas inexistentes e em soluções fáceis e clichês. Nem a mão geralmente firme de Mariza Leão, produtora de sucessos como ZUZU ANGEL (2006) e GUERRA DE CANUDOS (1997) parece ter sido capaz de algum efeito positivo.

Com um visual televisivo, nada ousado, que a todo instante revela uma ausência total de criatividade ou planejamento, só nos resta torcer que INESQUECÍVEL cumpra o que o título promete. Dessa forma, talvez sirva de alerta para que outros cineastas nacionais evitem alguns dos desastres aqui muito bem exemplificados.

Inesquecível, Brasil, 2007
(nota 3)





CIDADE DOS HOMENS

Uma das maiores - e mais bem-sucedidas - sagas do cinema brasileiro chega ao fim com CIDADE DOS HOMENS. Porém, ao contrário do que muitos possam pensar, este filme não é continuação de CIDADE DE DEUS, e sim o ponto final de um projeto que começou antes ainda, em 2002, com o curta PALACE II. Este projeto apresentou pela primeira vez os personagens Acerola (Douglas Silva) e Laranjinha (Darlan Cunha), dois garotos favelados. As histórias por eles protagonizadas continuaram na série de tv "Cidade dos Homens", que teve quatro temporadas de excelente retorno crítico e de audiência na Rede Globo, e se encerra agora na tela grande. E ao contrário do que se poderia supor, o que temos em cena não é um episódio alongado, mas sim uma trama independente e relevante, que merecia ser contada numa mídia mais específica, concluindo em alto estilo esta epopéia.

Se PALACE II (dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund e roteirizado por Bráulio Mantovani e Paulo Lins, a mesma equipe por trás de CDD) serviu como um laboratório ao aclamado longa de Meirelles - que somou em sua excepcional carreira quatro indicações ao Oscar, mais de três milhões de espectadores no Brasil e cerca de US$ 27 milhões de dólares de arrecadação mundial nas bilheterias - foi somente com o este desdobramento - o próprio "Cidade dos Homens", seja no cinema, seja na televisão - que algumas questões mais íntimas e urgentes desse microcosmo puderam ser melhor trabalhadas. Proporcionando, deste modo, um olhar mais complacente e, ao mesmo tempo, crítico.

CIDADE DOS HOMENS, o filme, traz ao centro da discussão um dos temas mais caros e recorrentes dentre a população enfocada: a ausência paterna. Enquanto Acerola está aprendendo a ser pai logo aos 18 anos, Laranjinha recebe a maioridade com uma inquietação: quem é - ou foi - seu pai? Os dois, amigos desde a infância, tentaram juntos aprender como responder estas inquietações. O fato de termos acompanhado a evolução dos dois personagens é extremamente gratificante, pois se crescemos ao lado deles, melhor compreendemos as motivações que os guiam. E para isto não se faz necessário ter assistido a tudo já produzido com eles: o uso de flashbacks pelo enredo é muito bem articulado, colocado em momentos cruciais e sem exploração. O excelente arquivo natural é posto à serviço do roteiro, contribuindo positivamente para todos os envolvidos.

Fernando Meirelles, após o sucesso internacional de CDD, tem se envolvido cada vez mais em projetos hollywoodianos, como o elogiado O JARDINEIRO FIEL e o ainda inédito BLINDNESS. Assim, ele assume como produtor, abrindo espaço para o sócio dele na produtora O2, Paulo Morelli (VIVA VOZ), tomar conta da direção de CIDADE DOS HOMENS. A transferência de mão pouco se sente, e o resultado apresentado é muito satisfatório. O que carece em CDH é a ambição, ousadia, originalidade e, acima de tudo, ineditismo presente no filme anterior, que provocou outros olhares, opiniões e reflexões sobre o cinema feito no Brasil. Este novo filme não quer traçar um painel grandioso sobre um problema social - não, a vez agora é de narrar o que acontece a dois moradores daquele universo, propondo uma visão mais íntima e, ainda assim, universal.

CIDADE DOS HOMENS não é o melhor filme do ano. Não é inesquecível ou revolucionário. Mas é um alento dentro de uma temporada de poucas surpresas. E, acima de tudo, é um trabalho honesto e sincero, que cumpre com honra o que se propõe, se posicionando como mais uma peça dentro de um contexto maior e que está firmado no cenário cinematográfico nacional. Sua ascendência é intimidante, mas ninguém aqui ficou aquém do esperado, e o que temos é uma obra singular, competente e digna de méritos próprios.

Cidade dos Homens, Brasil, 2007
(nota 8)




SANTIAGO


Um filme feito a partir da idéia de se fazer um filme. Assim é SANTIAGO, documentário de João Moreira Salles, o mesmo diretor de NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR, NELSON FREIRE e ENTREATOS. Agora, ao invés de tratar do caos social do país, de um dos maiores exponentes da cultura nacional ou de realizar uma crônica política, ele faz uso de uma iniciativa inacabado para tentar iluminar uma discussão filosófica a respeito do ofício que desempenha, de sua arte e da própria existência. E o resultado é arrebatador.

O projeto "Santiago - O Filme" começou em 1992, quando o diretor tinha apenas 30 anos. A idéia era retratar a vida e as idéias do mordomo da família Salles, um tipo de homem que não mais existe nos dias de hoje - dedicado ao trabalho, à honra, aos detalhes, à etica e às belas artes. Joãozinho - como o cineasta era chamado por Santiago - entrevistou seu personagem durante cinco dias e depois, já diante deste material, chegou à conclusão de que não tinha ali um filme como imaginara. Tudo que fora captado acabou deixado de lado, para ser redescoberto 13 anos depois, em 2005. João Moreira, mais experiente e com uma carreira consolidada, conseguiu exercer um novo olhar sobre aqueles depoimentos, editando uma obra que transcende a proposta inicial. SANTIAGO não fala de um homem em extinção, e sim de uma reflexão sobre nostalgia e a arte de contar histórias.

Com este novo foco, o diretor consegue perceber fatos imprescindíveis que até então estavam escondidos. Como a natureza daquele que dá título ao filme: quem havia conversado com ele anos atrás não fora o "homem" Santiago, e sim o Santiago "mordomo". Era uma relação patrão-empregado que estava em cena, o que comprometera o resultado daquela época. Hoje, mais crítico, ele consegue driblar estas limitações, fazendo uso delas para uma análise das próprias estruturas de poder. Assim, aproveita-se do fazer cinematográfico para discutir servilismo, cultura, sociedade e até mesmo política, mas sempre através de um viés contemplativo, mais no campo das idéias do que da prática. E esta se faz presente no filme apresentado, que por si só fala alto o suficiente.

Com uma bela fotografia em preto e branco de Walter Carvalho (de CENTRAL DO BRASIL e co-diretor de CAZUZA - O TEMPO NÃO PÁRA) e montagem discreta de Eduardo Escorel (de CABRA MARCADO PARA MORRER e DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA), SANTIAGO é o ponto mais alto da carreira de João Moreira Salles enquanto realizador cinematográfico. Moço bem educado de família rica, ele consegue se distanciar de suas origens para se transmutar num espectador da decadência social e artística, oferecendo um infinitude de opções para serem discutidas durante este processo de descoberta. Há aqui uma lição de vida a ser aprendida e estudada, mas mais do que isso está em questão um assunto de extrema relevância: a nossa própria revelação enquanto espectadores do mundo, e como tudo que está a nossa volta pode adquirir múltiplos significados, bastando para isso a definição da sintonia que estes fatos, pessoas e objetos estabelecem com nosso acervo pessoal e histórico. SANTIAGO é vida, e como tal está em constante mudança. E por isso mesmo que seus méritos são tão evidentes.

Santiago, Brasil, 2007
(nota 9)



QUERÔ

Baseado no conto "Querô - Uma Reportagem Maldita", de Plínio Marcos, QUERÔ marca a estréia na direção de um longa-metragem de ficção do até então documentarista Carlos Cortez. Amigo do dramaturgo criador de enredos clássicos da periferia paulista como "Navalha na Carne" e "Dois Perdidos Numa Noite Suja", Cortez afirma ter sido abençoado pelo próprio Marcos, que teria confiado nele a adaptação para o cinema desta história que se aproxima de outra obra referencial dentro da cinematografia brasileira: PIXOTE, A LEI DO MAIS FRACO, de Hector Babenco. A diferença está no tom assumido pelo discurso, tanto dentro da trama quanto, principalmente, fora da tela, agora mais esperançoso, mesmo que continue trágico.

'Querô' é o apelido recebido pelo menino cuja mãe prostituta se suicida banhada em querosene. Criado muito a contragosto pela dona do prostíbulo, assim que se sente 'grande o suficiente' - mas ainda uma criança! - decide fugir para tentar a vida nas ruas, sozinho. Tal decisão acaba levando-o para a Febem, onde uma experiência traumática - é currado por quase uma dezena de adolescentes - faz com que a revolta dentro dele cresça de modo incontrolável. A fuga mais uma fez se faz urgente, assim como a volta às más companhias, os amores perdidos e a carência latente.

Filmado na região de Santos, SP, QUERÔ conta com mais de 40 garotos da região nos papéis principais. Os únicos atores profissionais aparecem em pequenas participações, como Maria Luiza Mendonça (sempre entregue e visceral), como a mãe que o abandona, Ângela Leal, a dona do bordel, Aílton Graça (numa boa composição) e Milhem Cortaz (TROPA DE ELITE), como o coordenador da Febem. A história em si está nas costas dos meninos, que desempenham com louvor a função que lhes compete. Mas o maior mérito mesmo parece ter sido a escolha do protagonista, Maxwell Nascimento. Em todos os festivais que o filme participou ele acabou ganhando o prêmio de Melhor Ator! Foi assim em Brasília (ganhou ainda Melhor Roteiro, Som e Direção de Arte), no Ceará (escolhido também Melhor Filme e Edição), em Cuiabá (o grande vencedor, premiado ainda como Melhor Filme, Direção, Roteiro, Produção e Diretor de Arte) e no Paraná. Maxwell é um talento em estado bruto, que mostra na tela uma visão de si mesmo que muito provavelmente nem ele mesmo conhecesse. Palmas para o diretor e para o preparador do elenco, que o descobriram e o treinaram, e principalmente para este novo artista que se confirma com esta atuação como uma verdadeira força interpretativa.

QUERÔ é triste, revoltante, impressionante, angustiante. É verdadeiro e também um grito de alerta. Chama atenção para um problema e uma realidade de décadas atrás que hoje, mesmo tanto tempo depois, se mostra cada vez mais caótica. Fala sobre uma questão social, mas acima de tudo sobre a própria condição humana, a necessidade de sermos alguém no mundo e de significarmos algo para um outro. E, mais do que qualquer outra coisa, sobre não estarmos sozinhos. É um grito pela vida, antes que o fim implacável se faça mais uma vez presente.

Querô, Brasil, 2006
(nota 8)




TROPA DE ELITE

O filme nacional mais falado, polêmico e visto do ano, antes mesmo de chegar aos cinemas! Segundo os produtores, estima-se que cerca de 3 milhões de brasileiros viram TROPA DE ELITE em um dvd pirata, antes da estréia. Como ele já soma quase 2 milhões de espectadores pagantes em um mês em cartaz, isso dá um público total de 5 milhões, quase o mesmo de 2 FILHOS DE FRANCISCO (longa brasileiro de maior audiência nos últimos 15 anos) e superior a outros campeões, como CARANDIRU (4,5 milhões) e CIDADE DE DEUS (3,3 milhões), por exemplo. E agora, quando a poeira está finalmente baixando, a pergunta que cabe é: justifica-se todo este auê? E a resposta é: em parte.

José Padilha, após o aclamado documentário ÔNIBUS 174, percebeu que ainda havia muito a ser dito sobre a situação da violência no Brasil. Só que ele procurou um outro ponto de vista, que não o do bandido, como é mais comum. E o caminho óbvio, portanto, era a próprio polícia. E ele encontrou no livro "Elite da Tropa", de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel, a fonte para a origem do seu trabalho seguinte. TROPA DE ELITE não é uma adaptação, mas faz da obra literária inspiração para o discurso que queria promover. E este é, em poucas palavras: apesar de toda a corrupção, ainda há policial interessado em acabar com o crime, mesmo que os métodos empregados não sejam os mais justos.

O filme TROPA DE ELITE tem como protagonista o Capitão Nascimento (Wagner Moura, impressionante), membro do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro), um grupo extremamente seleto e de atuação bastante forte empregado em situações de alta gravidade. Nascimento quer descansar, e para isso precisa escolher um substituto. E os dois mais prováveis para ocupar o lugar dele recém ingressaram na força, Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro). Enquanto isso, estes vão descobrindo como são as coisas dentro de um órgão policial corrompido, ao mesmo tempo em que o BOPE estuda como garantir a segurança no morro durante a visita do Papa, tudo isso no final dos anos 90.

Apesar dos inegáveis méritos, TROPA DE ELITE não é desprovido de defeitos. E estes estão principalmente na visão simplista que promove de alguns vértices da trama, como os universitários (todos "mauricinhos" e "patricinhas" alienados com visões estereotipadas da verdade social do dia-a-dia) e os comandantes policiais (todos corruptos e poderosos, como grandes chefões da máfia que fumam charutos e comem camarões enquanto os subalternos cumprem suas ordens). Essa artificialidade prejudica um pouco uma melhor compreensão do que está sendo mostrado em cena: uma sociedade doente, que para combater um mal precisa fazer uso dele mesmo em doses ainda maiores.

Mas isso acaba sendo detalhe diante do que o filme oferece: atuações entregues e viscerais, uma direção no total domínio de suas ambições, uma edição precisa e vertiginosa, tudo funcionando de acordo com um roteiro amarrado e objetivo. TROPA DE ELITE talvez acabe entrando para a História do cinema nacional por outros motivos (a pirataria, a violência), mas merece um espaço também destinados às grandes produções nacionais, qualitativamente falando. Não entre os primeiros, mas certamente numa posição muito bem colocada.

Tropa de Elite, Brasil, 2007
(nota 8)